Porque fecho os olhos
Porque fecho os olhos é a resposta para as tensões e impossibilidades, o percurso pelo qual a memória configura um corpo presente.
[da orelha escrita por Debora Ribeiro Rendelli]

Suaves circunvoluções na água
Se imaginarmos que a palavra poética explicita os abalos sísmicos que atravessam uma existência, a extratigrafia das pedras poderia nos servir como metáfora da pelagem de sonhos que encapela o vagido analfabeto da vida. A poesia poderia ser compreendida como anotação sismográfica da erupção de alguém no mundo. Poderíamos ver os antigos manuscritos feitos sobre a pele de cordeiros natimortos como uma tatuagem inscrita nas pálpebras do tempo, o resíduo de uma voz que, por mais puída, por mais dilacerada e até mesmo irreconhecível, ainda soa, e por assim dizer, mantém os olhos abertos. Impossível olhar para atrás sem empalidecer. Mais aconselhável seria fechar os olhos deixando o seixo decantar no fundo das desaparições. Observar como o tempo solta suas escamas sobre nós assim como caem as pálpebras por cima das pupilas enquanto meu olhar tateia o oco labirinto das entranhas. Porque fecho os olhos é assim. Um livro que sublinha extratos de penumbra.
Fecho os olhos fermentando a gordura dos nomes esquecidos. Fechar os olhos é um desfibrilador portátil, um modo de sondar a existência de uma coisa por cima da outra, auscultando a “incrível violência do batimento involuntário”. As palavras nascem com um pequeno descompasso em relação a tudo que existe, nascem quase como se fossem nossos olhos, elas se abrem devagar, e dentro delas vemos a espantosa exuberância de um céu que nos alimenta, quem sabe, com a ilusão de que somos algo além do que palavras. A mobilidade da memória envolve suaves circunvoluções que nos levam do mundo azul visível e desbotado ao óleo vermelho nos rostos amarelos, do homem ilegível até sementes de fogo, nuvem plúmbea, brotos. Tudo tem a ver com mãos de linho nos escombros de uma catedral. Às vezes, o livro parece um longo poema de adeus, um aceno suspenso na púrpura neblina — não fosse o último poema. Pouco antes de onde o livro parecia se fechar, o olhar descerra a fragilidade do “nascimento,/os membros sutis de um recém-nascido,/ sua flexibilidade, seu cheio de pomar e leite”. Despedir-se equivale a se despir, abandonar a estufa autobiográfica para ir de encontro ao brilho do metal sem impurezas. Há lilás sobre as casas, há o branco estupor como um pálido segredo nas trevas, é assim que se insinuam olhos em véspera.
Ao longo da Idade Média, a pintura era uma realidade muito diferente se comparada às telas que nos acostumamos a ver penduradas nas paredes dos museus. Primeiro arranjava-se um suporte rígido, em geral, tábuas madeira ou lajotas de ardósia. Em seguida, aplicava-se uma fina camada de gesso. Por cima do gesso, as camadas de tinta eram cuidadosamente sobrepostas. Das cores mais diáfanas, o pintor passava aos matizes azulados, delimitando as regiões sombrias até chegar à superfície quando, então, fazia pairar negros carvoentos. Deste modo, quando exposta à luz ambiente, o brilho atmosférico transpunha as camadas sucessivas de tinta, infiltrando-se até tocar o fundo branco e retornar, retroiluminando o quadro de dentro para fora. A pintura possuía uma anatomia venosa de brilhos que estruturava o abismo mágico da emanação. Na teologia medieval, a luz era uma manifestação de algo visível e incorpóreo que a pintura parecia fazer encarnar. A cor era luz encarnada. A vibração cromática era a conjunção do espírito na carne. Pintar consistia em construir uma caixa de ressonância na qual a luz mergulhava na carnagem granular do pigmento, criando campos vibratórios que se articulavam num plasma subcutâneo de veios luminosos batendo contra as entranhas marmóreas para encarnar na pele de uma imagem. Literalmente, a pintura emanava luz. Da mesma forma, creio que o último poema do livro retroerupciona o halo desbotado do formol com um jato de terra minando das entranhas nos membros de um recém-nascido.
A mão que desce até as entranhas desliza sob as pálpebras cerradas para emergir com a força de uma água-viva. É curioso observar que uma água-viva não tem sombra, seu corpo diáfano reluz dentro da água como água na água. Fecho os olhos deslizando minhas pálpebras sobre a pele penumbrosa das pupilas e dentro do meu crânio um mar de imagens se agita com a respiração. Quantos fachos coloridos se entrelaçam ao torpor silencioso da maré. Lá fora, ouço a superfície perfeitamente lisa e a espuma de escamas borrifadas penteia a cabeça arenosa da praia. Abro os olhos e o mundo vive tortuosamente deflagrado num ar granulado de sóis. A morte é apenas uma curva na espiral de suaves circunvoluções como a névoa do torpor escoando do verde para o amarelo é a língua de fogo numa vela que se afoga nos vestígios marítimos da pele. Ao final, o livro se pergunta: “quem primeiro abriu os olhos” quando as bestas já não mais rodeavam os ninhos, pois agora é a dieta aromática das horas que nutre o ar espiralado do primeiro olhar. Para além da labiríntica tempestade de coisas quebradas, “um resto de matéria fará nascer uma concha/E dessa concha a música imaginária das ondas/irá se tornar presente sem que o mar esteja.”.
Arturo Gamero
março de 2022
São Paulo