Estados Unidos com a América embaixo
Tempo, nascimento, morte, compõem o fio que urde este livro. Sutra do nascimento, poema que o fecha, traz nas mãos um frágil ser nascente.
[da orelha escrita por Judite Canha Fernandes]

A julgar pelo título, Estados Unidos com a América embaixo, o leitor pode esperar que este livro traga um conjunto de poemas sobre o insidioso imperialismo norte-americano, que corrói há anos a liberdade e as identidades culturais dos países do continente. Mas não se trata disso, não exatamente. Embora haja sim num e noutro poema certo tom de denúncia, o sentido da poesia de Augusto diverge, por exemplo, daquele que se encontra nos clássicos poemas de Maiakovski dirigidos às camadas oprimidas da população, em defesa ardente por uma revolução formal e intelectual, ou daquele que vemos em parte significativa da produção do movimento de poesia Slam, revigoramento de nossa rica literatura.
Para dizer sobre esse sentido profundo na obra de Augusto, um artista que vive em permanente estado de criação, é preciso destacar uma ambivalência: de um lado o real, com sua clareza e fatalidade; de outro, o imaginado, instância da criação e da liberdade. Augusto em seus poemas busca suplantar o real pela necessidade de experimentar e de viver o imaginado.
É o imaginado que dá lugar a um novo paradigma de compreensão do mundo e do humano. Os homens se matam nas guerras, as injustiças sociais assolam os países, cresce vertiginosamente o comércio de remédios antidepressivos no planeta, o propósito da existência humana se resume a comprar e consumir, tudo isso constitui o real, pernicioso e violento, mesmo que sob a aparência de progresso. E por isso o imaginado é preferível: “Ah o real/ flâmula dos entristecidos/ dos que tiveram a imaginação usurpada/ dos que caminham sempre na estrada pavimentada”, se lê no poema-paródia “Lisboa Revisitada”.
O imaginado pode ser muitas vezes o irreal, porque se resvala em pura fantasia. Mas pode ser também o surreal no sentido cunhado ineditamente por Apollinaire: o que está acima do real, o que, elevando-se, ultrapassa as leis da convenção moral, o princípio da lógica, a racionalidade, a prudência, os bons costumes. Augusto se vale de uma linguagem poética marcada por metáforas surreais para colocar em prática sua fuga dos espaços dominados pela rigidez do real: “Quero vencer o tempo pela persistência/ de um dia imaginado// enquanto todas as dúvidas guiam os desesperados/ para o mundo de convicções”.
O real na sua camada político-social, em toda parte do mundo, já se consumou fracassado. A felicidade prometida é um produto perecível que precisa ser comprado todos os dias. As pessoas tentam, se esforçam, trabalham e se iludem: “vencedores/ de uma vida já perdida”. A ideia positivista cria a sensação falsa de que tudo é regular, determinado e previsível. Mas subitamente sobrevém o desconhecido, diante do qual poucos sabem agir: “A estrada é pavimentada até certo ponto/ depois ela tem raízes/ fendas/ e escuridão”.
Quando se conhece tudo, quando se ilumina tudo, tudo se torna ordinário e falso, porque a verdade é sempre aquilo que ainda não foi tocado pela razão. E eis que está “perdido o mistério/ pela falsidade de tudo”. O mistério também pertence ao mundo do imaginado. E quem está disposto a se aproximar das coisas misteriosas neste tempo de certezas? Ao perseguir o mistério, sem lhe usurpar o encanto, a poesia de Augusto se afirma anti-iluminista. Poesia contra o discurso conceitual, logo contra o discurso da ciência – o que é muito diferente daquilo que se costumou chamar de negacionismo, que no fundo é a estupidez de não se conhecer a ciência, de não se conhecer coisa alguma –, poesia que se volta para a escuridão: Contra o exílio imposto pela claridade, torno-me noite.
No entanto, não é uma poesia idealista ou que se traduza nos modelos de uma doutrina. Longe disso. É uma busca. É uma reflexão sobre as tentativas de fugir do banal e de perseguir o mistério sem que ele se quebre. Augusto tem a delicadeza de poucos em tocar nesse elemento. Consegue tomar nas mãos uma porção de água do rio sem que essa água deixe de ser corrente, sem represá-la, sem deter seu movimento. “Queria ser um poeta do sagrado”, cogita. Mas não é, não quer ser, no fundo. Se se confirmasse um poeta do sagrado, teria uma categoria pública e definível tão real quanto o real que renega.
Essa poesia se abre para um outro lugar, nem paradisíaco, nem ideal: lugar do devir, do poder ser, do inesgotável mistério, da imaginação. Não poderia se tornar utopia, de esquerda ou de direita, de cima ou de baixo, porque ela representaria a descrição de sacrilégio, a revelação do que não pode ser revelado. “Coisas em chamas/ são as que me bastam/ orifícios por onde uma outra vida/ serpenteia a dor/ para chegar até o fundo”.
Sem poder conhecê-lo, o leitor tem algumas sugestões do mistério tramado palavra por palavra. Ele se insinua nas paradoxais homenagens a monges budistas: “Thich Nhat Hanh/ você me deu duas pedras/ Uma para viver/ Uma para nada”; nas preferências estéticas diante do mundo desconcertado: “Deve ser por isso que chorei/ ao ver As Tentações de Santo Antão”; nas tentativas quase sempre fracassadas do amor: “O amor não é feliz/ mas tem sentido”; na criança que se foi ou que se é e que ainda não aprendeu a resignação: “Ladeira de cimento cinza/ onde desce o velocípede/ Nele está a criança/ nela a eternidade”; ou ainda na relação harmônica entre Homem e Terra, já definitivamente perdida: “E a vida segue porque foi dito que a vida segue/ embora pássaro/ céu/ e/ vento/ já tenham sido/ passados para trás”.
Fernando Pessoa, poeta presente nesta obra, em memória e em referências diretas, escreveu diante do mistério: “Se calhar, tudo é símbolos”. Pois que nos poemas de Augusto, dos mais herméticos aos mais referenciais, tudo se torna símbolo do mistério. Mesmo um poema de análise conjectural como “Brasil”, que poderia funcionar como um soco certeiro no estômago da política nacional, acaba por se afinar ao princípio da obra, e cria uma interessante prosopopeia sociológica, na medida em que entende o país não como uma entidade coletiva abstrata, mas como uma pessoa multiplicada num caleidoscópio de neuroses, com quem se deve conviver, entre o amor e o ódio, e de quem se deve exigir o mínimo de lealdade. É o Brasil do imaginado contra o Brasil do real.
Thiago Buoro
Setembro de 2023