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O relâmpago

Como se chama quem espera um relâmpago? Alguém que olha para a escuridão esperando, mesmo sabendo que ele poderá não vir? Noite após noite, quem espera um relâmpago começa a acumular escuridões. Sente que seus ombros ficam arqueados, é um corcunda de fardos maiores do que poderia suportar. E, no entanto, o relâmpago é como o ópio, que é como o riso, que é como o vício. Ele, no instante brevíssimo de sua duração, levanta as bordas do mundo e somos tomados por uma esperança sem nome. A mesma esperança de quem imagina um futuro diferente para o mundo que vivemos. Não é um viciado quem ainda se embriaga de sonhos? Todos os viciados que conheci tinham um dirigível secreto nessa região que mistura sonho, desejos não realizados e infância. Se você os tocasse no lugar certo, poderia extrair a pedra da santidade e fazer dela o pó da conversão.

Tem sido muito difícil esperar relâmpagos, estar disposto a ser atravessado por esse cúmplice do silêncio. Tão veloz que o seu rugido se atrasa, tão luminoso que seu corte abre o céu e também me abre. Abre-me para a confissão de que não posso guardar.

Agora estou dizendo exatamente isso: não posso guardar. Não somente o tempo, ou a vida ou aquilo que minhas mãos alcançam. É algo maior. Da ordem do transcendente. É a própria impossibilidade de guardar o clarão, aquilo que foi revelado e que me atravessou para que a palavra viesse. E agora que ela chegou? Vai ser prepotente e chamar o que viu de história?

Infelizmente a história que vivemos não muda seu curso por causa do relâmpago. A história que chamo de minha vida e a história de todos nós que se chama mundo, planeta, humanidade, permanece impassível. Nós é que precisamos fazer aguma coisa cada vez que formos agraciados pela visão luminescente. A primeira delas poderia ser chamar todas as histórias pelo nome de vida e desmascarar os agentes da morte. Quando o relâmpago cai nós vemos os agentes em suas tocas, a imensa construção de túneis entranhados por todos os lugares que na escuridão parecem apenas parte da paisagem. Com a luz breve, seus olhos brilham avermelhados e vemos que, no fundo, parecem-se com todos os mamíferos assustados pelo imprevisível.

É muito fácil identificar um agente da morte quando o encontramos: ele é uma criatura que usa toda sua imaginação para inventar pretextos absurdos contra a vida. É mais fácil para ele ornamentar a sociedade com suásticas por todos os lados do que ver a sua própria cara refletida no rosto de um miserável. Pra ele, os problemas do mundo resumem-se em aspiradores de pó, valas, muros e arames farpados. E não importa em absoluto quais meios se utilizem, desde que as ruas estejam "limpas e seguras", isto é, povoadas de solidão e vagas de estacionamento. Caminhos e pessoas fora da calçada o incomodam. Pessoas viciadas o incomodam. A palavra vida o incomoda.

Não é um vídeo, uma foto ou uma pintura que o incomodam. É a palavra vida em toda a sua substância e carnalidade emotiva, o abraço de orgone de tudo que ele pretende expulsar do seu paraíso loteado. Paraíso que ele fabrica na tentativa de coibir todos os relâmpagos.

Então estou aqui, lotado de escuridões, todas em sua mais terna floração, como uma mulher de pernas abertas que nos deseja, esperando o relâmpago. E vi alguns em minha vida. E a maioria deles tive de ver sozinho, porque ver um relâmpago junto de alguém é um ato de profunda intimidade. Não pelo romantismo da cena, mas porque a partir desse ponto o que for iluminado passa a ter duas testemunhas. Sai-se da experiência mística, intransferível, para o mundo da história. Para a vida. E toda vida precisa de mais de uma testemunha para que não desfaleça na própria ilusão.

Quanto tempo eu esperei ou tive de esperar? Não pude olhar para o relógio, porque podia perder o momento do relâmpago. E nessa espera, estou perdendo tudo. Nenhuma aposta é tão alta e sem prêmio quanto esperar o relâmpago. Vão-se muitos convites onde não entram os relâmpagos, onde os olhos são virados e domesticados em outra direção. Passam corredores e corredoras, preocupados com a relação entre o corpo e o emprego, com seus boletos amarrados, exibindo seus quilômetros, sumindo na paisagem onde estou apenas esperando. Antes me cumprimentavam. Agora que estou desnutrido e com olheiras, fingem que não existo. Sabem que nunca irei correr na mesma direção ou aceitar a falsa leveza que exigem das relações. E depois também não acreditariam em mim se lhes dissesse sobre o relâmpago, porque são mestres da negação. O raio mesmo teria de lhes partir a cabeça para que descobrissem que o céu tem muitos segredos e armas.

Foi há poucos segundos. Finalmente ele veio e iluminou por pouco tempo a terra onde piso e vivo. Alguém mais viu? Alguém mais foi lançado ao centro do agora onde as vértebras brilham na escuridão e as ossadas não podem permanecer escondidas ou movidas para as tocas? Quando a escuridão volta, também voltam os conspiradores. Agora marcham sob a terra, subindo em nossa direção. Mas o relâmpago também mostra a saída.



Foto de Damon Lam
Foto de Damon Lam









 
 
 

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